quinta-feira, 31 de março de 2005

O carcará, Nicolau e as mexericas


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A fazenda de Nicolau Júnior era uma fazenda diferente. Lá ele plantava laranja, milho, e do outro lado da casa grande "plantava" boi, vaca, e alguns carneiros pra poder vender uma lãzinha. Pra ele era um absurdo falar que se criavam esses animais. "Criar eu crio meu cão", dizia pra si mesmo, "meu boi eu planto". Herdou a fazenda de seu pai Nicolau, que faleceu após cair de cima do telhado da casa grande, quando foi tentar botar fogo em uma ninhada de gambás. "Maldito pai, Deus não perdoa a cagada", pensava ele, quando subia no telhado. Grudou com cimento no meio das telhas uma cruz, que contemplava com orações quinzenalmente, exatamente no horário da morte do velho: lá pras cinco da tarde. Ironicamente, toda vez que ele ia lá pra cima rezar, havia uma bostinha de gambá ao lado da cruz. E toda vez ele ria, emocionado, e a bostinha parecia rir junto com ele.
Numa quinta-feira, lá pras cinco da tarde, enquanto jogava uma das bostinhas lá pra baixo, ele avistou uma caminhonete de cor estranha entrando na fazenda. Junto com ela vinha um carcará, voando lá no alto, na mesma direção que o carro. Quando a caminhonete parou, o carcará deu um agudo, uma meia-volta e foi embora pro oeste. De dentro do veículo saiu uma moça. Uma moça e uma prancheta. O rapaz desceu correndo antes que a cozinheira fosse mal-educada com a dita, mas enquanto descia a escada já podia ouvir Dona Luzia gritando, a prancheta caindo, a porta do carro batendo. Nicolau apertou o passo e chegou a tempo de conversar com a moça:
- Desculpe, eu sou Nicolau, em que posso ajudá-la?
A moça, morena, ruborizada na face tanto pelo calor quanto pela ira de Dona Luzia, tinha traços suaves no rosto, olhos suaves, tudo suave, até as orelhas, mas uma certa gravidade na hora de falar:
- O senhor é Nicolau Copérnico Júnior? Tenho um pedido de vistoria da prefeitura de Cotriguaçu. Preciso ver seus bois, porque um deles foi encontrado morto na estrada e há suspeita de febre aftosa.
Nicolau nem prestou atenção no que a moça falou, só reparou que ela era uma égua das boa, com rostinho de cabra, e dotada de duas mexericona no peito. Chamou a moça lá pra dentro pra tomar um café da Dona Luzia, que fez tudo com a cara amarrada, jogando o avental no chão, dando de ombros quando o rapaz agradeceu, e batendo a porta depois de ter terminado o serviço.
Duas semanas depois, a veterinária Joana D'Arc já fazia Nicolau chupar mexerica como nunca. Mas, em que pese Nicolau ficar bem saudável, a doutora dizia séria:
- Precisamos exterminar seu nelore doente imediatamente, antes que o nelore da fazenda do Seu Giordano Jr. seja contaminado.
Seu Giordano Bruno Jr. era o fazendeiro vizinho, concorrente direto no mercado bovino matogrossense. Nicolau, cego como uma marmota apaixonada, mandou reunir os funcionários da fazenda, cavou uma cratera num terreno vazio do lado do milharal e exterminou sua boiada. Uma lágrima caiu no dorso do cavalo que ele montava.
Na semana seguinte, todavia, Joana D'Arc estava casada com seu Giordano Bruno Júnior, filho de Giordano Bruno, fazendeiro falecido que forneceu as telhas da casa grande para o pai de Nicolau, na época da construção da fazenda. Nicolau avistou a caminhonete somando às terras da fazenda do lado, e foi para sua alcova chorar pelo pai, pelas vacas, até pelos gambás. Dona Luzia se aproximou e disse:
- É, seu Nicolau. Essas moça com nome de francesa, rostinho vermeio... O carcará avisou, ele sempre avisa, o sinhô sabe disso. Tó, chupa uma mexerica.
Nicolau vendeu a fazenda e foi criar cavalos no interior paulista. Nunca mais botou uma tangerina na boca, só laranja.

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domingo, 20 de março de 2005

Admiratione


Em algum dia perdido do ano passado, enquanto pardais construíam seus ninhos em locais vulneráveis, um amigo meu, sentado sobre o muro de sua casa, contava a respeito do que Aristóteles dizia sobre amizade. Ele havia lido ou ouvido sobre isso em algum lugar e estava todo empolgadão. Pelo que me lembro, porque já faz um bom tempo, ele disse que existem três tipos de amizade: amizade por admiração, prazer e interesse. E disse que essa amizade por admiração era a que o filósofo qualificava. Uma amizade que se alicerça somente em prazer ou interesse não seria tão sólida quanto a estruturada por admiração. Concordei com ele. Mandei-o tomar no cu, o rapaz não parava de falar.
O ser humano é um polígono, penso eu. Se fôssemos analisar as pessoas a partir de todas as arestas, não sobraria um ser admirável no mundo, ninguém se salvaria, nem Almir Sater, nem São Francisco de Assis, nem Raskólnikov. Mas acho que essa admiração à qual o homem grego escravista se referiu é uma admiração mais sinistra, obscura. É como se o fator de admiração fosse o vértice do polígono, algo muito subjetivo na pessoa. Muitas vezes se admira alguém sem saber o porquê, como se as arestas mostradas por um indivíduo fossem apenas dicas do que ele é, pistas de para onde convergem os pontos que ligam as arestas. Acredito que quanto mais se tenta decifrar tudo isso, e quanto mais se tem o retorno, maior a admiração, maior a amizade. Lembrei do episódio aristotélico ontem à noite, sábado, enquanto tomava uma boa cerva durante uma boa conversa.

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terça-feira, 15 de março de 2005

As coisas da tarde


Oh, caro leitor deste post, cá estou eu pensando algumas coisas.
Primeira Coisa
Penso o seguinte: a música Você Vai Ver é mesmo inebriante. E pra quem acha que me refiro à composição de Tom Jobim, cai no ledo engano de achar que sou um intelectual só porque esse blog tem uma carinha meio intelectual: a música à qual eu me refiro é a da dupla Zezé di Camargo & Luciano. É aquela que tem um pedaço assim: "Eu vou ficar, guardado no seu coração, na noite fria solidão, saudade vai chamar meu nome". Sim, coloquei em negrito, não tenho vergonha de falar não. Eu acho que é impossível uma pessoa não escutar essa música sem ficar contagiada. Não me chame de cafona, vulgar, você não tem motivo para fazer isso se não conhece a música, você vai ver.
Segunda Coisa
Creio que a virtude mais importante que se pode encontrar em um Homo sapiens é a sua capacidade de criar. Qualquer outra virtude, acompanhada de criatividade, fica mais decente. As outras virtudes desprovidas de uma maquiagem de criatividade são cruas. Atos criativos são como cílios.
Terceira Coisa
Falando em criatividade, lembrei que certa vez, andando pelas ruas de uma cidade litorânea, acompanhado de um amigo afogado no deleite que produz o álcool misturado à cevada, criei um adjetivo: grandecioso. Uma pessoa grandeciosa é uma pessoa que destila um charme absurdamente notável, ou seja, ela é graciosa de maneira grandiosa. Ex: "Juliana entrava na sorveteria e, grandeciosamente, saía pela calçada tomando seu sorvete de pistache, mexendo nos seus cabelos longos, lisos e loiros, pra delírio de Genival, o moço que pesa o sorvete."
Quarta Coisa
Esqueci.

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domingo, 6 de março de 2005

Os porquês?


Um campo de futebol, antes do jogo começar, é uma coisa muito bonita. Mulheres altas são instigantes. Para esquecer de uma bolinha de gude preferida e perdida, é preciso jogar fora todas as que a acompanhavam, inclusive o saco que as guardava. É bom se perder propositalmente dos amigos em uma balada. Mas é bom encontrá-los depois também. Todas as mulheres ruivas são meio defensivas, alternando com a mais aguda ofensividade? Quando a maioria das mulheres vai aprender a usar as jóias certas? Por que de vez em quando um pagode cai bem? E um forró? Por que, em certas ocasiões, o melhor é voltar ao começo? Por que quando não se olha nos olhos de uma pessoa, ela te pergunta o porquê disso só pra se sentir melhor que você? Por que a sarjeta é tão cativante, apesar de feia? Uma pesquisa divulgada semana passada comprova que cães têm caráter. Qual instrumento tem o som mais tocante: piano ou violão? Por que a Kibon demorou tanto tempo pra lançar no mercado o sorvete de banana? "Conquest of Paradise" (aquela música do Vangelis que tem um coral cantando de boca fechada), mesmo após ter sido tocada muitas vezes antes das finais de Paulistão, no Globo Esporte, ainda é uma música que me estremece. A angústia é facilmente curada com a euforia. Os pés cansados agradecem aos corrimãos das escadas.

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sexta-feira, 4 de março de 2005

"Pára de roubar, meu!"


Anteontem minha querida mãe foi seqüestrada. Saindo da manicure, na rua da minha casa, dois rapazes abordaram suas unhas recém feitas adentrando o carro. Mas minha mãe, do jeito que é, do jeito que sempre foi e do jeito que sempre será, em vez de ficar caladinha e fazer tudo o que os rapazes queriam, não parou de falar durante os 20 minutos de seqüestro. Tudo isso com direito à mentiras como: "Você vai me levar no caixa eletrônico? Primeiro que eu não lembro a senha. Segundo que eu não tenho nem R$200 (na verdade são 250) na conta! Você vai só perder tempo comigo!". Soma-se a isso uma certa dose de sessão psiquiátrica nesses tensos minutos. Disse ela ao assaltante que dirigia: "Meu, qual a sua idade? Dezenove? Poxa, tenho um filho na sua idade. É duro te ver fazendo isso. Pára de roubar, meu! Um dia vão te pegar, vão te matar, e aí? É perigoso fazer isso."
O mais interessante é que, segundo ela, o assaltante que dirigia respondia tudo, dialogava. Se o rapaz tivesse com a unha encravada, ou se a Ponte Preta (Curíntia daqui de Campinas) tivesse perdido no dia anterior, mamãe poderia estar no céu neste momento. Aliás, ela também arriscou a vida ao pedir para que o rapaz não acendesse o cigarro, 0u ao repreendê-lo quando o carro estava na contra-mão, ou ao pedir que deixasse a bolsa, o celular, a agenda, a carteira. Concluí então que o seqüestro durou 20 minutos devido à mesma razão pela qual eu às vezes bato a porta do meu quarto: saco cheio dela. Eles bateram a porta do carro na cidade de Hortolândia, e a deixaram lá. O carro ainda não foi encontrado. Fim.

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