sexta-feira, 21 de outubro de 2005

Vasos comunicantes


Eu preciso de vasos comunicantes. Uma vez uma moça que se encontrava em situação periclitante me disse que tudo o que eu precisava na vida era de vasos comunicantes. Perguntei a ela o porquê e ela repetiu que tudo o que eu precisava era de vasos comunicantes. Não precisava saber o porquê das coisas. Só de vasos comunicantes. O que são vasos comunicantes? Eu tenho o segredo da vida nas mãos mas não sei onde é o botão que liga. Quando eu chacoalho faz barulho e isso é tudo o que eu posso dizer.

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sábado, 1 de outubro de 2005

O sofrimento do coelho e a pizza fatal


O jovem Gutié encontrou um pedaço de plástico com bolinhas que estouram e ficou 3 horas estourando, sem pensar em nada. Gutié ficou concentrado na tarefa, ignorando o tempo diabólico que passava como um trem. Foram 3 horas de absoluto virtuosismo plástico. Chegou a encontrar um ritmo musical no estouro do plástico. Entretanto, como eu disse, foram 3 horas somente. Isso porque Vilmo das Mãos, pai de Gutié, entrou no quarto como um rinoceronte e disse, interrompendo todo o processo:
- Gutié, seu vagabundo, sua pizza à moda baiana chegou.
- Mas pai, eu não como pizza desse sabor. Há algo de muito errado nessa sua afirmação pai. Repense. Reveja seus instintos. Não é assim que as coisas func..
- Então deve ter sido sua irmã, aquela malandrinha homeopática.
- Mas pai, eu não pedi nenhuma pizza - disse a irmã, no quarto ao lado, tapando o lado vocal do telefone.
Vilmo das Mãos pegou então Roger, o coelho de Gutié, pela pata traseira esquerda e disse:
- Seu hamster mentecapto, quem foi que pediu essa pizza?
- Pare pai, eu imploro que você deixe em paz o meu... coelho pai, coelho! - corrigiu Gutié.
O coelho foi atirado contra a cama, debatendo-se ao sentir a fronha de Gutié raspando em seus pêlos de cor aguti. O coelho permaneceu na cama, como se já não houvesse mais necessidade de se esconder, a humilhação já estava feita, ele já havia sido segurado pela pata traseira e já havia sentido o odor da baba de Gutié. Era um momento triste para o coelho. O coelho sofria. O coelho sentia mais dor que todos naquela casa, o coração do coelho latejava mais que a paciência do entregador de pizza esperando do lado de fora. O coelho, ah, o coelho!
O entregador então não se conteve e entrou na casa, aos gritos:
- Eu tenho outras pizzas para entregar, outras pizzas baianas, portuguesas, napolitanas, tenho pizzas de todos os lugares, até da puta que o pariu. Só preciso de 27 reais e 50 centavos.
- Seu insolente, leve essa pizza daqui, ninguém aqui aprecia esse sabor, ninguém gastaria 27 reais e 50 centavos em uma pizza baiana. Aqui só pedimos calabresa com cebola.
A voz de Vilmo das Mãos foi acompanhada pelo som da porta do lavabo se abrindo e de lá saiu a cadeira de rodas que sustentava o pai de Vilmo das Mãos, Vilmo dos Braços, um velho cego e triste. Vilmo dos Braços demorou alguns segundos para conseguir articular a frase que mudaria num átimo todo aquele clima hostil da casa de número 778. Disse, de voz entrecortada:
- Fui eu. Eu pedi... eu... eu pedi a... pi...a pizza, a baiana.
Foram as últimas palavras do velho que, olhando para o entregador com o cheque no colo, faleceu, com sua mão ainda exalando o odor de sabonete líqüido de erva-doce. Era a primeira vez que Vilmo dos Braços pedia uma pizza, pois tinha vergonha de ligar para a pizzaria.

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