O carcará, Nicolau e as mexericas

A fazenda de Nicolau Júnior era uma fazenda diferente. Lá ele plantava laranja, milho, e do outro lado da casa grande "plantava" boi, vaca, e alguns carneiros pra poder vender uma lãzinha. Pra ele era um absurdo falar que se criavam esses animais. "Criar eu crio meu cão", dizia pra si mesmo, "meu boi eu planto". Herdou a fazenda de seu pai Nicolau, que faleceu após cair de cima do telhado da casa grande, quando foi tentar botar fogo em uma ninhada de gambás. "Maldito pai, Deus não perdoa a cagada", pensava ele, quando subia no telhado. Grudou com cimento no meio das telhas uma cruz, que contemplava com orações quinzenalmente, exatamente no horário da morte do velho: lá pras cinco da tarde. Ironicamente, toda vez que ele ia lá pra cima rezar, havia uma bostinha de gambá ao lado da cruz. E toda vez ele ria, emocionado, e a bostinha parecia rir junto com ele.
Numa quinta-feira, lá pras cinco da tarde, enquanto jogava uma das bostinhas lá pra baixo, ele avistou uma caminhonete de cor estranha entrando na fazenda. Junto com ela vinha um carcará, voando lá no alto, na mesma direção que o carro. Quando a caminhonete parou, o carcará deu um agudo, uma meia-volta e foi embora pro oeste. De dentro do veículo saiu uma moça. Uma moça e uma prancheta. O rapaz desceu correndo antes que a cozinheira fosse mal-educada com a dita, mas enquanto descia a escada já podia ouvir Dona Luzia gritando, a prancheta caindo, a porta do carro batendo. Nicolau apertou o passo e chegou a tempo de conversar com a moça:
- Desculpe, eu sou Nicolau, em que posso ajudá-la?
A moça, morena, ruborizada na face tanto pelo calor quanto pela ira de Dona Luzia, tinha traços suaves no rosto, olhos suaves, tudo suave, até as orelhas, mas uma certa gravidade na hora de falar:
- O senhor é Nicolau Copérnico Júnior? Tenho um pedido de vistoria da prefeitura de Cotriguaçu. Preciso ver seus bois, porque um deles foi encontrado morto na estrada e há suspeita de febre aftosa.
Nicolau nem prestou atenção no que a moça falou, só reparou que ela era uma égua das boa, com rostinho de cabra, e dotada de duas mexericona no peito. Chamou a moça lá pra dentro pra tomar um café da Dona Luzia, que fez tudo com a cara amarrada, jogando o avental no chão, dando de ombros quando o rapaz agradeceu, e batendo a porta depois de ter terminado o serviço.
Duas semanas depois, a veterinária Joana D'Arc já fazia Nicolau chupar mexerica como nunca. Mas, em que pese Nicolau ficar bem saudável, a doutora dizia séria:
- Precisamos exterminar seu nelore doente imediatamente, antes que o nelore da fazenda do Seu Giordano Jr. seja contaminado.
Seu Giordano Bruno Jr. era o fazendeiro vizinho, concorrente direto no mercado bovino matogrossense. Nicolau, cego como uma marmota apaixonada, mandou reunir os funcionários da fazenda, cavou uma cratera num terreno vazio do lado do milharal e exterminou sua boiada. Uma lágrima caiu no dorso do cavalo que ele montava.
Na semana seguinte, todavia, Joana D'Arc estava casada com seu Giordano Bruno Júnior, filho de Giordano Bruno, fazendeiro falecido que forneceu as telhas da casa grande para o pai de Nicolau, na época da construção da fazenda. Nicolau avistou a caminhonete somando às terras da fazenda do lado, e foi para sua alcova chorar pelo pai, pelas vacas, até pelos gambás. Dona Luzia se aproximou e disse:
- É, seu Nicolau. Essas moça com nome de francesa, rostinho vermeio... O carcará avisou, ele sempre avisa, o sinhô sabe disso. Tó, chupa uma mexerica.
Nicolau vendeu a fazenda e foi criar cavalos no interior paulista. Nunca mais botou uma tangerina na boca, só laranja.
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