sábado, 6 de agosto de 2005

A pescaria verdadeira de Lino


Lino sempre pescava na beira daquele laguinho. Sozinho, sempre. Afinal, todo bom pescador sabe que voz humana assusta o peixe - entre ficar em silêncio ao lado de alguém e ficar em silêncio sozinho, a segunda opção era mais agradável.
Numa quarta-feira de cinzas, dia branco, enquanto coçava um dos calcanhares marrons picados por saúvas vermelhas, um átimo de distração foi o suficiente para que a vara de bambu quase lhe escapulisse. Mas segurou firme com a mão esquerda aquele bambuzinho quando este já parecia voar em direção à água. "Arre, pexe malandro! Esse é quase um boi!", pensou. Foi fazer o sinal da cruz, como sempre fazia, pra dar sorte, mas o peixe não deixou nem ele chegar no Espírito Santo: teve que segurar firme a vara com as duas mãos pra tirá-lo da água. Terminou a santíssima trindade com a língua, então.
De súbito uma expressão pavorosa tomou conta da face de Lino. O que saía da água não era um peixe e sim uma mulher, uma mulher de cabelo cinza, não grisalho, cinza mesmo. E em vez de roupa, estava coberta de algas cor púrpura. O anzol tinha perfurado o queixo dela e mesmo com o sangue escorrendo não havia naquele rosto um semblante de dor. Pelo contrário: os olhos fechados com muita serenidade, os lábios também, as mãos para trás, tranqüilas. Saiu da água charmosamente, sem gritar, sem se rebater contra o chão, sem franzir o cenho. Desnecessário dizer que Lino pensou ser aquilo um sonho.
A mulher então tirou o anzol da pele como quem tira um fio de cabelo da camisa. Sentou-se um pouco distante do garoto e disse:
- Eu sou a Verdade.
- Arre, a verdade?
- Sim, garoto, sou a Verdade.
- Arre, que mentira, ocê é uma mulher!
- Como posso mentir se sou a Verdade, menino?
A Verdade então ficou olhando para a beira do lago. A situação inédita urgia uma atitude drástica de Lino, como dar umas varadas nas costas dela, mas tudo o que o garoto fez foi sentar na pedra para observá-la. Ela então presseguiu:
- Menino, eu não posso mais passear por aí sem ser escurraçada. Por isso eu vim pra esse lago, aqui é calmo, ninguém me vê, os bagres nem ligam pra mim. Sandice aparecer por aí. Pensei que nunca ninguém fosse me pescar. Mas agora tenho que ir, você me descobriu, vou arrumar outro habitat.
A mulher então entrou na sombra dos eucaliptos que cercavam o lago e desapareceu para sempre. O menino foi pra casa aturdido, andando devagar e chutando pedrinhas. Ao se aproximar da casa, viu o pai tomando café com a mãe sob o alpendre dominado pelos tico-ticos. Apertou o passo e chegou gritando:
- Pai, mãe, pesquei uma mulher! Ela era assim, assim, cinza, quer dizer, de cabelo cinza, toda roxa, peguei ela pelo queixo! Ela conversô comigo!
- Arre muleque, se for pra contar história de pescador, pelo menos fala que pegô um pexão!
- Mas pai, é verdade!
A mãe riu tanto que deixou cair café na sandália. Zombaram mais algum tempo do garoto, que jogou exasperado a vara no chão e entendeu as palavras da mulher do lago. Só não compreendeu o porquê de ela ter mordido a isca que, aliás, era de mentira.

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