sábado, 14 de maio de 2005

O dia em que virei um peixe


Olhei para as paredes do meu quarto. Continuei olhando e me vi preso por saber que podia me livrar delas. Olhei então para o pôster da Serra da Bocaina e me encontrei mais preso ainda, como se os cipós daquela mata não pudessem me enforcar, como se jaguatiricas rissem de mim por serem desbravadoras, enquanto eu era apenas um curioso insaciável. Vi então os morros costeiros de Juréia sob o crepúsculo litorâneo cravando em meu esôfago um anzol de pesca de Meros, fisgando-me. Foi assim que me senti um mero Mero, pescado por algum forte punho invisível, enquanto o anzol rasgava minha traquéia, perfurava minha língua, de modo que minha glote ficasse obstruída, não podendo eu gemer ou gritar. Provei de uma sensação de lavagem, meus pensamentos eram embaralhados, passei a desconhecer o que era um relacionamento, uma carreira, um time de futebol, uma carta de sete de paus, um signo de gêmeos, uma tecla, uma cerveja e suas implicações, seqüelas, entraves, conseqüências puídas de pureza. Eu era um peixe. Todas as coisas concernentes à terra não mais perpassavam pelo meu campo de visão. Não sentia mais o doce da vida, estava na água do mar. Minha música era a da comunicação entre baleias, entre golfinhos. Vi então um pequeno peixe morto boiando e abocanhei, sem violência, contrastando com a gravidade da reação após tal ato: fui puxado abruptamente para cima, e minhas nadadeiras se empenharam em lutar contra aquele anzol, aquela linha, aquela sombra de barco na superfície me amedontrando. Era uma situação incontornável, a força era colossal, e meus 2 metros de escama não eram o suficiente. Mas eu brigava, e nesse momento me senti livre. Conforme ia chegando à superfície, minha cabeça era preenchida, lembranças dos pôsteres tomavam conta da minha mente, acompanhadas de música, música humana, coerente. Fui jogado então no chão do barco, pescadores cortaram minhas nadadeiras dorsais, pélvicas, estocaram uma lança em meu opérculo, minha visão enegreceu e eu voltei para minha cama. O pôster de Juréia olhava para mim, tornando minhas lembranças marítimas sublimes e meu colchão desconfortável.

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