domingo, 9 de janeiro de 2005

Amêndoas e saxofone


- Ah, não sei. Às vezes eu acho que tudo é uma poeira só. Eu, você, o futebol, o cinema, os hot-dogs, os faróis, os museus, James Joyce, os letreiros neon de uma loja de móveis, os meus discos do Charlie Parker, a carta da minha primeira namorada, esse anel aqui no meu dedo, a discussão do casal aqui do lado. Tudo poeira. Até esse meu devaneio é um bolo de poeira, com uma cereja de pó em cima e um recheio de nada, incolor e insosso - dizia o rapaz, roendo as unhas e remexendo o dedão do pé dentro do sapato preto, sujo e velho, enquanto observava uma mosca na mesa, limpando as patinhas.
- Olha pra mim, você não está olhando pra mim. Olhe nos olhos de uma pessoa quando for lhe falar uma coisa ridícula como essa. Pelo menos você fica digno - a voz da moça despertou o olhar do rapaz, antes perdido na função do inseto.
- Te conheci agora há pouco, não consigo olhar nos seus olhos direito. Não me acostumei a eles ainda.
O saxofonista do bar tocava uma música bonita, mas meio quebrada, com muitas pausas, assim como a conversa dos dois. O rapaz deu um gole na taça do vinho, e dessa vez disse pra ela, mas olhando para o sax:
- Meio clichê essa coisa de olhar nos olhos. Isso não implica em sinceridade. Talvez em beleza, em estética da situação, mas não em sinceridade. Posso falar uma baita lorota, com todo espalhafato do mundo, te deixar estupefata, enquanto me fixo nos átomos da sua íris, mas não pensando nada além de quão lindos são esses seus olhos amendoados. Eles podem ser uma mera distração pros meus enquanto eu conto minha mentirinha. Já tive muitas conversas boas olhando uma placa de "não estacione", um outdoor, o mar, uma casca de banana no chão, um sax...
O pianista da banda começou a preencher as pausas do sax, seguido pelas sondagens do baterista. A moça, que já tinha um sorriso no rosto, levantou e disse pro rapaz, pegando em sua mão:
- Pára de olhar esse sax e vamos dançar. Eu sei que você não sabe, mas eu te ensino. E você nem precisa olhar nos átomos dos meus lindos olhos amendoados. Sua cara vai estar virada pra um lado e a minha pra outro, podemos conversar melhor.
Dessa vez ele olhou afoitamente nos olhos dela, disparou um sorriso contido e disse:
- Vamos - e ele foi.

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