sexta-feira, 17 de dezembro de 2004

Queijo doce, perfume azedo


16:57 e Romião estava em seu carro, suando na costeleta, ajustando o banco, dizendo pra si mesmo todas as frases que devia ter dito e não disse. Olhava pro retrovisor e combinava as frases com suas expressões pra ver como ficariam exatamente, se elas se encaixavam. Tentou várias. O "eu te amo" não deu certo, não sabia qual expressão facial usar, em qual tom de voz discursar, então deixou pra lá. Talvez porque não amasse, só sabia falar isso de mentira. A que caiu melhor foi "mas por quê?". Ele sabia como ninguém dar uma entonação de inocência àquela frase. Talvez porque fosse inocente mesmo, mesmo tentando encontrar meios de se auto-flagelar. Sempre foi meio mimado, sabia muito bem se fazer de vítima.
"Olha, devia ter comprado um vinho mais caro, feito um jantar menos Maggi e mais originale, não acha?". Pronto, era a expressão perfeita. A sobrancelha subindo, o jeito devagar de pronunciar originale, a pausa pro fechar dos lábios que precederia o "não acha", estava estupendo, estupendo como o macarrão de verdade que devia ter feito. Podia até acrescentar ao Maggi um "sabor quatro queijos", mas aí achou exagero. Talvez porque não admitisse que alguém não gostasse desse sabor, não escarnecia seu precioso paladar. Era fiel aos seus sabores, aos seus queijos, aos seus quatro queijos.
Criou frases com "olhos verdes lindos" seguidas por "mesmo não gostando de olhos verdes", usando na voz um ar de lealdade e na testa uma franzimento de condenação. Deus, quantas frases, quantas possibilidades de dizer tudo aquilo enquanto sentira pela última vez o cheiro de Elsève e Nívea misturados àquele ar quente e confuso de outubro. Lembrou então da mulher da rodoviária que lhe deu uma tirinha de amostragem de perfume - o perfume dela. Sentiu vontade de esmurrar aquela moça atrevida de cabelos enrolados e camiseta de uma perfumaria, que trabalhava pro acaso em plena hora do almoço.
Mas depois de lembrar de tudo isso, enxugou o suor na costeleta e lembrou do que pensou no momento exato em que seu olfato trabalhava na rodoviária: "que merda de perfume, muito azedo". Olhou então pro retrovisor e disse: "Que merda de perfume, muito azedo". Entonação e expressão facial deram as mãos naquele instante e Romião ficou satisfeito. Pegou o celular e ligou pra uma morena, de olhos NEGROS. Talvez porque olhos verdes lhe fizessem mal.

|