quarta-feira, 22 de dezembro de 2004

Asas, concomitantemente


Um anjo negro desceu da mangueira, depois de filar umas sete mangas. Era um pé de manga-rosa, anjos negros não gostavam de manga-espada. Anjo negro que é anjo negro come manga-rosa. Manga-espada é pros anjinhos com auréola e olhos transparentes, daqueles que não mexem no cabelo, nem choram por desespero, só por graça. Daqueles bem sem graça.
Desceu aos trancos e galhos mesmo, sua asa tinha muita graxa. Só funcionava em dia de chuva, ou quando ele tomava sorvete de uva-passa. Mas aquele era um dia muito quente e ele não tinha dinheiro pra comprar sorvete. Tinha dinheiro só pra comprar pipoca, mas achava o pipoqueiro um facínora.
- Concordo, uma vez engasguei com uma pipoca, fiquei tossindo uns três meses. Quando tossi pra fora, uma pomba traçou o milho e engasgou. Mas essa morreu - disse o cão, telepaticamente, abanando o rabo, após ler as idéias do vulto negro. O anjo não tinha visto o cão lá de cima da mangueira e, após o espanto, fitou o cão por um bom tempo antes de responder.
- Se você tivesse comido uma manga, o milho desceria junto com os fiapos dela e você não engasgaria - respondeu o anjo, também em pensamento.
- Mas sou um cão. Não como manga, não tenho manga de camisa, nem manga de túnica, como essa sua aí. Queria tanto ser o cão-chupando-manga! Nem aquela fruta estranha, a mangaba, que fica mais perto do chão, eu como. Eu não alcanço, sou um vira-lata franzino - dessa vez ele disse latindo, o rabo já não abanava mais.
- Cão, você é feliz, não reclame. Conheci um guaxinim que, certa vez, comeu uma mangaba e engasgou com o caroço. E já vi muitos cães infelizes por terem que usar aquelas roupas com mangas apertadas na parte supra condilar do fêmur - respondeu o anjo, que resolveu exibir sua voz andrógena, em vez de seus etéreos raios telepáticos.
Contentou-se o cão. Foi embora então, com o rabo entre as pernas. O anjo-negro sentou encostando suas asas graxentas nas veias da árvore, puxou sua gaita, acendeu um cachimbo. Mas aí lembrou que não dava pra tocar gaita e fumar cachimbo ao mesmo tempo. Essa simultaneidade era um privilégio daqueles serafins e querubins, que assoviavam enquanto tocavam harpa; batendo as asas, ainda por cima.

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