sexta-feira, 22 de outubro de 2004

O escárnio do pernilongo

Estava eu em Birigüi, nos confins do universo, jogando sinuca com um filho da puta (aliás, qual filho da puta não joga sinuca?). Esse rapaz, no auge de seu evidente, primário e surpreendente alcoolismo, aceitou uma aposta que fiz. "Ei, se eu ganhar, você me dá aquele cd do Jeff Buckley?" Sua sinapse lenta terminou na resposta: "jsfdfgds, beleza." Peguei o taco e, enquanto uma nova espécie de pernilongo picava o meu pé , dei um baile no adversário. Meu prêmio foi um cd gravado, riscado, sujo, identificado por um escrito de péssima caligrafia, em amarelo: "Grace", Jeff Buckley.
A situação que eu vivia ou ainda vivo, não sei, tinha relação indireta com o esqueleto emocional daquele cd. Voltei de Birigüi na terça posterior à segunda da sinuca. Cheguei às 20:50, se não me engano, em São Paulo. Visto que não moro mais em São Paulo e sim em Campinas, ainda tinha pela frente umas 2 horas de viagem até a não desejada casa - porque casa é uma coisa cruel, faz o passado ficar mais forte. Peguei o prêmio negro (a parte de trás do cd é preta), acoplei no meu discman consumido pelo tempo e pelas quedas. A partir daí, mais 5 minutos tentando fazer o discman se empenhar em ler o negócio. No banco da frente, um casal brigando por nada, a estrada escura e o ar-condicionado do ônibus me congelando muito (meus trajes eram interioranos - havaianas, bermuda, camiseta e boné sujo de inseto esmagado); cenário perfeito pra ouvir o cd com calma.
Não vou falar o que senti quando ouvi. Mas depois de uma semana li uma crítica sobre o cd que dizia algo mais ou menos assim: "Quem tiver escutado Grace do início ao fim sem ter sentido ao menos um nó na garganta, pode ter a certeza de que tem um grave falha no caráter".
Voltando à maldita terça-feira, desci do ônibus me sentindo bem. Quando cheguei em casa, um nó na garganta. Mas não foi um nó bom como um dos que eu havia tido. Era um nó angustiante, sem desespero ou raiva. As coisas voltavam a ser como eram antes . Inexoravelmente, o cd voltava a ser escutado na hora de dormir, enquanto um pernilongo campineiro de espécie já conhecida me picava a perna, dando-me boas vindas, escarnecendo-me.

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