domingo, 24 de outubro de 2004

Isqueiros

O homem sujo olhou para trás e viu aquela mulher de vermelho, olhos negros, procurando no bolso da calça o isqueiro para acender o cigarro. Ficou sem graça pois a mulher era muito linda enquanto ele era apenas uma grande vergonha com aquela roupa laranja que não exibia seus anseios. Na verdade, denunciava uma ânsia contrária a de seu íntimo. Ele não era aquilo, não era laranja. Ele era sim um terno preto, era um cigarro muito mais nobre que o dela, acendido por um isqueiro repleto de detalhes, bem clássico , que poderia brasar também o cigarro da rapariga com muita eficiência, se ela quisesse, logo na primeira investida da pólvora. Queria que quando ela olhasse, não o notasse direito para que não achasse que ele era aquilo lá, aquele pedaço laranja de insignificância.
Posicionou-se então atrás de uma mulher velha e gorda vestida de laranja, um laranja mais forte que o de sua camisa, para poder vê-la sem trocar olhares. Enquanto a obervava, concluiu que o isqueiro preto BIC já desgastado no bolso de sua camisa laranja seria o acendedor daquele lindo cigarro dormente da moça desprovida de isqueiro, talvez perdido.
A coragem, para ele, não era uma virtude. Vinha aos impulsos, sorrateira e cheia de brio. Naquele momento, ele sentiu vários daqueles impulsos, um deles no estômago, outro na testa, com uma gotícula, e outro no pé, mas aí viu que era a grande mulher de laranja ameaçando esmigalhar seu mindinho. Essa mesma mulher gorda de laranja parecia emagrecer um quilo a cada segundo que morria, uma vez que a confiança do rapaz aumentava tão ligeiramente que a senhora se tornava cada vez menos necessária, cada vez mais magra.
Sentidos os impulsos, deu-se conta do advento da coragem que dificilmente dava as caras, e foi até ela. Livrou-se daquele risco ortopédico que corria o seu mindinho e, corajoso, com o desembaraço de um canhoto, caminhou até a mulher. Quando chegou perto, arrancou o isqueiro do bolso da camisa com muita força, sem destreza alguma. O isqueiro caiu no chão. Viu então a morena observando curiosa seu isqueiro preto sendo pisoteado pela mulher gorda de laranja, que já fumava.

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