quinta-feira, 28 de outubro de 2004

Foi

Depois de sentar ao lado dela, trocar algumas palavras sobre um pedaço de limão que estava no chão e receber dura repreensão por morder demais as unhas, notou uma certa gravidade na voz da moça. Percebeu então que não era só a voz, os seus sapatos brilhavam demais e ela virava o pescoço mais rapidamente que o usual. Notou uma pequena marca no pescoço branco dela, mas ignorou, mesmo sabendo o que era. Relevou tudo isso, como se ouvisse uma música fantástica com um chiado insuportável. E em meio aos solavancos de uma conversa desequilibrada, procurava meios de fazer aquele momento durar um pouco mais, mesmo sendo torturante o bastante para fazê-lo querer ir embora. Repentinamente, um beijo interrompeu aqueles planos de partir. Diferente de todos os outros que ela já havia dado, o beijo durou um tempo que ele não esperava que fosse durar, mas precedeu um automático e impulsivo "vai, tenho que ir agora." Levantou-se preguiçosamente, olhou para todos os lados e para a face lôbrega da moça, enquanto fazia outro comentário sobre o limão para ver se ela ria de de novo. Ela riu, mas o apressou novamente, como se ir embora fosse um ato responsável e sensato. Ele caminhou devagar, com uma satisfação hipócrita. E assim que virou a esquina, não mais ao lado dela, sentou-se num bar, pediu o almoço. Pra beber, uma limonada. Bebeu com raiva, num gole só.

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